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"Vivo sen viver en min!"
Uma oração sofridamente fodida…
Foda-se, está tudo incompleto. Está tudo incompleto. Foda-se. A vida está irremediavelmente incompleta. Dizem que a vida se completa na morte. Ora foda-se, a vida é o contrário da morte. E a morte é o contrário da vida. E o contrário do contrário é a origem da vida. Não há dicotomia mais absurda. Para além de tudo, Deus fez da morte a sua vingança. Deixemos a ergonomia de Deus em paz. Deixemos a insolvência da eternidade em paz. Deixemos a economia das almas em paz. Deixemos o desespero da paz em paz. Deixemos todas as desilusões em paz. Deixemos a santíssima trindade em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos em paz a brutalidade inusual de um coito severo. Deixemos em paz a virtude de um orgasmo múltiplo e de uma ejaculação precoce. Deixemos em paz as raras ejaculações tardias e os orgasmos funcionais. Deixemos definitivamente em paz a fertilização em vítreo. Deus, dizem os profetas, quis a vontade dominada pela crença. Deus, dizem os teólogos encartados, quis os homens dominados e santos e responsáveis e obedientes e respeitadores e simples e inteligentemente obsessivos pelos gestos simbólicos da abdicação. Deus quer existir na dissidência humana da vacuidade. Deus é um momento eterno. Deus deixou de ser verdadeiro a partir do momento em que me fez mortal. Deus teve o descaramento de se travestir de serpente. Foda-se, Deus teve de se disfarçar de animal rastejante para nos condenar à condição humana. Deus não desiste da paz em favor da guerra nem da guerra a favor da paz. Deus não desiste da necessidade urgente de ser uma desilusão cada vez mais urgente e insurgente e insolvente e incipiente. Deus fodeu-nos definitivamente a vida eterna afirmando com língua de fogo que era isso que nos oferecia em troca de lhe sermos fiéis. E se há coisa que seja verdadeiramente humana é que os homens são féis a Deus. Muito mais fiéis que Deus o é em relação aos homens e à sua nua humanidade. O Deus de todas as coisas é cada vez mais um Deus de coisa nenhuma.
Arboreto
Vem vindo devagar o rolo negro
o odor acre em volutas que o nariz persegue
salpicos de cinza depositam-se no terraço
entram fagulhas pelo quarto dentro
seguindo uma nuvem chamuscada de borboletas.
Os carvoeiros agacham-se atrás das choças
aterrados.
Os jardineiros preparam baldes
os lenhadores atentam no fio dos machados.
A colcha branca da cama
manchada com um crime alheio
afinal nosso
é de todos o crime
com mata em chamas ou rios pútridos
todos somos criminosos:
carvoeiros jardineiros rachadores e
lenhadores
e paisanos de outros orientes.
Erguem-se gritos sob a ameaça
o fogo tão próximo das casas
uivam cães
os lobos já não existem
e as lagartixas correndo loucamente
em busca de um buraco no chão
ocupado já por escaravelhos
uma cobra aflita
e outros animais que buscam salvação
mas voltam para trás
acabando
predador e presa
por partilhar a mesma lura subterrânea
enquanto no mundo dos homens
lavrar mais escândalo ainda do que flamas.
A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés
sem raivas sem espírito de vingança
não é sequer um julgamento
apenas o resultado da nossa ganância.
Piores somos que animais
bestas sem raciocínio nem piedade
merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão
a espada na mão direita
a ameaçar a criança suspensa
da mão esquerda.
Mas não temos aqui nenhum tribunal
nem juízes cruéis
justos ou santos.
Gaia é um superorganismo
Terra-Mater
Magnificente, ó Sublime e Sereníssima
Mãe de toda a gente
rogai por nós!
Gaia ignora sentimentos
não conhece a raiva o ódio a arrogância
não sabe o que é a vingança.
O eterno riso na boca
dá-nos
sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos
lenha para nos queimarmos.
Os carvoeiros agacham-se atrás das choças
aterrados.
Os jardineiros preparam baldes de água
para apagar o incêndio
os lenhadores atentam no fio dos machados.
Não há salvação para o povo da floresta.
Sem árvores não se forma oxigénio
resta-nos morrer asfixiados.
Maria Estela Guedes.
Extraído do livro Arboreto (inédito)
Muito bom. Merci
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