Já não vais descalço pelas
margens do rio, já não roubas fruta nos quintais, nem jogas à macaca traçada no
chão. Nem sequer na tua memória há alguém interessado em convidar-te para
capturar girinos. Nem um fio de cabelo se mexe. Está tudo quieto e misterioso.
Talvez esperando uma fraqueza para te assaltarem, para serem elas as presentes
e não tu presente nelas. As recordações ficam estátuas e o único movimento que
te ocorre é o de um baloiço que acabou de parar. Às vezes revolves frases
familiares onde te procuras em ti, visto de fora. O tempo individual é uma
internidade relativa, quando te envolve com a emoção que te foi proporcionada
nos espaços.
Na órbita dos pensares um território de ninguém, talvez um limbo ou uma
estrada. Quando acontece meditares pensas que é por ela que vais, sem
encruzilhadas. Deixas que uma parte do interno solte as algemas com que o corpo
o prendeu e, então, deslizas. Agora, o curso do olhar vai também fotografando a
espuma, a ausência de margens. Na primeira comunhão sabias voltar-te para o
altar e unir as mãos como nas estampas do livrinho branco, com um terço
debruçado, olhar para a Virgem e pensar no céu como recompensa e o no inferno
como castigo. Hoje e aqui parecem dissipar-se o medo e as ameaças. Já não chega
com a mesma violência esse oceano de chamas que aterrorizava as noites pesadas.
O inferno tornou-se na obrigação de pertencer a um externo sofrível, o céu na
etiqueta da paz e da justiça moribundas. Ficaram na guerra, nos olhares dos
ditadores e dos fascistas esses invernos de fora que te queimaram por dentro.
Ninguém pode apagar os rasgos que se abriram no interior, as cicatrizes mais
profundas. Através da viagem essa internidade come experiências. Se não fora a
fé, aguentarias menos. Não pode ser apagado o que te formatou. Continuas a
viagem e dizes que não há nada para além do vazio. Vês um enxame de estrelas
que te fere os olhos, mas isso é de os fechares com muita força. Ouves a
melodia cósmica do silêncio e perguntas por Deus. Ele não responde, mas isso é
de teres problemas com a audição. O ruído assusta-te. Por isso afastas-te, cada
vez mais. Há um campo aberto onde esperas deitar-te a contemplar as nuvens.
Elas, compenetradas a formar uma mensagem para que leias, tornam-se carregadas.
Foges da tempestade, mas isso é porque te esqueceste do guarda-chuva ao lado da
porta que dava para o Sol. Voltando os olhos para o alto, cegas. Está tudo
escuro e, perdido o tempo que acendia velas, soltas uma lágrima. Não sabes se
cai de ti ou se é chuva a romper pelos olhos que davam acesso ao infinito. Não
há pontes e resolves construir um círculo. Talvez te inscrevas nele ou sejas a
própria inscrição do amor. Pensas que o amor não é nenhuma sucessão de
Fibonacci e formas um puzzle com os pedaços que de ti se soltam, como lascas, como
cascas. Sobre ti muitas camadas, em sobreposição, descamam-se, lentamente.
Sentes-te nu e corres, como louco em fuga do manicómio. Depois serenas, mas não
porque te injectem calmantes. A química tem um poder que não cabe em ti. Falas
contigo, preenches o monólogo com a neve da lâmpada, mas o que acontece é que
falas com uma quantidade de gente interna e externa. Perguntas por ti, nessa
névoa onde te aglomeraste ao vento, mas ninguém sabe dizer-te. Sentes ser uma
possibilidade, uma versão, um traço, um acorde. O resto é um aglomerado de
círculos com membranas. A personagem que se matriculou na composição do abismo
procedeu à compilação dos quadros da tua existência. Questionou a largura, a
profundidade e, sobre o tempo real, a verdade e o artifício. A angústia
conduz-te novamente à estrada. A noite finca-se nos passos de dentro. Habitam
perguntas, mais do que respostas naquilo que ainda podes, naquilo que ainda
dizes. Porém não sabes, nem o satélite no alto. Há demoras e todo um negrume
que te engole vivo. Na interrupção do negro, um ou dois segundos de luz. E tão
incerta será se não houver quem a sinta, quem a observe. Desprendes-te da
estrada, da cidade, do país, do continente, do planeta, da galáxia e continuas
preso ao pensamento – esse gracioso décor até pelo próprio desconhecido.
Saindo, é sempre em ti que estás. Estando, é sempre com o sair que sonhas.
Marília Miranda Lopes