descrição

"Um filo-café é um triciclo. Movimenta-se pelos próprios. Não tem petróleo. A sua combustão é activada pelo desejo. Não se paga, não se paga. Apaga-se. E vem outro. Cabeças sem trono. Um filo-café lembra-se. Desaparece sem dor."

23.9.12

filo-café internidade: contributos (3)



 internidade


Que deus encontre a espuma dos seus dias.

Se a água corre nos olhos e deus suga a alba pela retina, se o corpo se cobre de lama pela imensidão da espuma, onde nos resta o fogo - o fulgor eterno e divino do bosque, o indizível sono da nossa palavra? O enunciado amoroso do desespero. Quem se julga descobrir nos textos que pronuncia - a cavalgada de emoções? Quem ousa quebrar o rio, a torrente que encarcera os pulsos? Ferve-me este púbis, um desejo de te foder pela boca e me verter pela língua, ombros da angústia, enquanto me perco e me vislumbro o oceano extenso do meu sonho. Cerco-me das árvores do teu sémen, da tua nudez. Quero cegar-me no horror da vida digital durante as hipotéticas expectativas amorosas - os altericídios anterramados pelo clarão neurótico. Arde-me as mãos. Quero foder-me. Quero foder-te. Come-me o cérebro pela cona.

A água que aos olhos sangra é o corpo de deus emerso na alba do rócio da retina.


Carlos Vinagre

22.9.12

filo-café internidade: contributos (2)



Da possibilidade da internidade



As novas palavras estão para a língua como as mutações genéticas estão para a biologia, fazem parte da permanente evolução e tanto podem durar milénios como somente o momento da sua criação. São também um factor da própria evolução. Surgem por mil e uma razões, por raiva, por gozo e muitas vezes pela necessidade de enunciar uma ideia ou designar um objecto, quando ainda não existe uma palavra correspondente. É simples de imaginar que as palavras telefone ou televisão só tenham surgido depois da criação destes curiosos objectos. É também assim a génese da linguagem na criança. Esta começa por compreender mais do que consegue exprimir. Portanto, o conteúdo precede a sua expressão.
E o contrário, será possível? Será imaginável encontrar-se um sentido para uma palavra que ainda o não tenha? E internidade será mesmo uma palavra? Parece que não é, pois nada significa. Então, o quê é? Sons articulados. Porém, internidade ecoa a qualquer coisa, pede um significado, o qual deverá surgir, a meu ver, não através de um percurso semântico, dada a inexistência de um conteúdo dizível, mas de analogias fonéticas.
Se um grupo de InComuns se juntasse numa praça dando vivas à internidade, quem passasse, para além de se questionar sobre a saúde mental ou a religiosidade dos manifestantes, ouviria vivas à eternidade. Coisa com a qual a internidade não pode ter nada a ver. Internidade remete para a intestinidade, para o seu de cada um. Não equivale ao eu, não é o self, nem o adjectivo substantivado pela psicanálise, o inconsciente e também não equivale ao insight.
Proponho que internidade seja o lado interior de cada um, que cada pessoa em parte desconhece, podendo ser mais visível aos olhos dos outros e que caracteriza cada ser humano. Dir-se-á, mas para isso já existe uma palavra, personalidade. Porém, a noção de personalidade implica a existência de muitos traços comuns a todos os seres humanos, o que é verdade, e é da multiplicidade de incontáveis combinações e variações que resulta uma determinada persona. A internidade será um conceito menos extenso e menos claro. É o que é incomum, recôndito e próprio de cada um. É o que nos representa por dentro e nos individualiza a todos. É o que faz com que um poema possa conter coisas desconhecidas para o seu autor. É o que faz com que pessoas muito parecidas possam não se encaixar e que as mais distintas se possam conjugar. 

José Leal de Loureiro

21.9.12

filo-café internidade: contributos (1)



Internidade


Já não vais descalço pelas margens do rio, já não roubas fruta nos quintais, nem jogas à macaca traçada no chão. Nem sequer na tua memória há alguém interessado em convidar-te para capturar girinos. Nem um fio de cabelo se mexe. Está tudo quieto e misterioso. Talvez esperando uma fraqueza para te assaltarem, para serem elas as presentes e não tu presente nelas. As recordações ficam estátuas e o único movimento que te ocorre é o de um baloiço que acabou de parar. Às vezes revolves frases familiares onde te procuras em ti, visto de fora. O tempo individual é uma internidade relativa, quando te envolve com a emoção que te foi proporcionada nos espaços.

Na órbita dos pensares um território de ninguém, talvez um limbo ou uma estrada. Quando acontece meditares pensas que é por ela que vais, sem encruzilhadas. Deixas que uma parte do interno solte as algemas com que o corpo o prendeu e, então, deslizas. Agora, o curso do olhar vai também fotografando a espuma, a ausência de margens. Na primeira comunhão sabias voltar-te para o altar e unir as mãos como nas estampas do livrinho branco, com um terço debruçado, olhar para a Virgem e pensar no céu como recompensa e o no inferno como castigo. Hoje e aqui parecem dissipar-se o medo e as ameaças. Já não chega com a mesma violência esse oceano de chamas que aterrorizava as noites pesadas. O inferno tornou-se na obrigação de pertencer a um externo sofrível, o céu na etiqueta da paz e da justiça moribundas. Ficaram na guerra, nos olhares dos ditadores e dos fascistas esses invernos de fora que te queimaram por dentro. Ninguém pode apagar os rasgos que se abriram no interior, as cicatrizes mais profundas. Através da viagem essa internidade come experiências. Se não fora a fé, aguentarias menos. Não pode ser apagado o que te formatou. Continuas a viagem e dizes que não há nada para além do vazio. Vês um enxame de estrelas que te fere os olhos, mas isso é de os fechares com muita força. Ouves a melodia cósmica do silêncio e perguntas por Deus. Ele não responde, mas isso é de teres problemas com a audição. O ruído assusta-te. Por isso afastas-te, cada vez mais. Há um campo aberto onde esperas deitar-te a contemplar as nuvens. Elas, compenetradas a formar uma mensagem para que leias, tornam-se carregadas. Foges da tempestade, mas isso é porque te esqueceste do guarda-chuva ao lado da porta que dava para o Sol. Voltando os olhos para o alto, cegas. Está tudo escuro e, perdido o tempo que acendia velas, soltas uma lágrima. Não sabes se cai de ti ou se é chuva a romper pelos olhos que davam acesso ao infinito. Não há pontes e resolves construir um círculo. Talvez te inscrevas nele ou sejas a própria inscrição do amor. Pensas que o amor não é nenhuma sucessão de Fibonacci e formas um puzzle com os pedaços que de ti se soltam, como lascas, como cascas. Sobre ti muitas camadas, em sobreposição, descamam-se, lentamente. Sentes-te nu e corres, como louco em fuga do manicómio. Depois serenas, mas não porque te injectem calmantes. A química tem um poder que não cabe em ti. Falas contigo, preenches o monólogo com a neve da lâmpada, mas o que acontece é que falas com uma quantidade de gente interna e externa. Perguntas por ti, nessa névoa onde te aglomeraste ao vento, mas ninguém sabe dizer-te. Sentes ser uma possibilidade, uma versão, um traço, um acorde. O resto é um aglomerado de círculos com membranas. A personagem que se matriculou na composição do abismo procedeu à compilação dos quadros da tua existência. Questionou a largura, a profundidade e, sobre o tempo real, a verdade e o artifício. A angústia conduz-te novamente à estrada. A noite finca-se nos passos de dentro. Habitam perguntas, mais do que respostas naquilo que ainda podes, naquilo que ainda dizes. Porém não sabes, nem o satélite no alto. Há demoras e todo um negrume que te engole vivo. Na interrupção do negro, um ou dois segundos de luz. E tão incerta será se não houver quem a sinta, quem a observe. Desprendes-te da estrada, da cidade, do país, do continente, do planeta, da galáxia e continuas preso ao pensamento – esse gracioso décor até pelo próprio desconhecido. Saindo, é sempre em ti que estás. Estando, é sempre com o sair que sonhas.

Marília Miranda Lopes

12.9.12

filo-café: internidade

6 de outubro de 2012
Lugar do Capitão
Rua do Gonçalinho, 84
Viseu